Por Bruno Bragança e Regina Helena Moema – Sócios da Tristão Fernandes Advogados
O crescimento vertiginoso da população idosa é uma realidade inexorável. Em que pese o envelhecimento da população brasileira, a velhice é um tema pouco valorizado e repleto de estigmas. Estima-se que em 2050, 16,5% da população mundial terá mais de 65 anos, segundo projeção da Organização das Nações Unidas (ONU)[1]. No Brasil, projeta-se que os idosos representarão 30% da população brasileira até 2050, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[2].
Soma-se a isso que o ser humano é mais suscetível a algumas espécies de doenças neurológicas quando do envelhecimento, assim apontam os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)[3] .
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou, em 24 de setembro de 2023, a segunda parte da reportagem “A VIDA CIVEL EM XEQUE”, tratando das interpretações da Corte Cidadã sobre os institutos da interdição e da curatela. A mencionada notícia merece considerações à luz dos direitos das pessoas idosas com deficiência[4].
Antes, impera frisar que a velhice não representa limitação da capacidade civil, em que pese os retinentes casos de tentativa de interdição[5] fundados na falácia da idade avançada da pessoa que se pretende interdição, representativos do preconceito que sofrem as pessoas idosas.
No sensível livro “Velhos são os outros[6]” a Desembargadora Andrea Pachá narra sua longa vivência em uma vara de família da Comarca da Capital do Rio de Janeiro e mostra que o envelhecimento não deveria ser sinônimo de morte em vida, pois “nessa estrada que não terminará enquanto existirmos, seguimos, velhos, olhando para outros velhos e nos sentindo menos velhos. Depois da velhice vem mais vida. E mais vida. E mais vida”. Quem é velho tem vontades e desejos. Lutar pelo direito do idoso hoje é a esperança de que, no futuro, seremos preservados.
Não à toa os idosos ostentam tutela diferenciada promovida pelo Estatuto da Pessoa Idosa (Lei 10.741/03), cujo escopo, por meio de regras e princípios, é promover os direitos e as garantias fundamentais dos idosos, como a preservação da saúde física e mental e o aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, com base na liberdade e dignidade (art. 2º)[7].
Inovando o combate aos estigmas sociais, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), cujo teor alterou profundamente as já criticadas[8] definições anteriores de capacidade e incapacidade civil, traz dispositivos festejados.
A Lei 13.146/15 confere a plena capacidade às pessoas com deficiência (PsDs) (art. 6º)[9], e com conceitos mais democráticos e plurais, contém normas aptas a promover autonomia, isonomia e inclusão das PsDs de forma mais efetiva, v.g., no âmbito do trabalho, da garantia à moradia digna, da tecnologia assistiva.
Assim, quando o preconceito e a insciência fazem com que indivíduos, mesmo familiares, tentem tolher a capacidade civil das pessoas idosas, porque somam a idade com alguma espécie de deficiência[10], ao se conferir a plena capacidade às PsDs, (art. 6º), quaisquer debates acerca da legitimidade para expressão da vontade das PsDs partem da presunção da declaração válida de vontade, invertendo o ônus da prova a quem a alega a existência de vício volitivo (art. 374, IV, do Código de Processo Civil) [11].
Ainda, a lei trouxe a curatela como hipótese excepcional, a ser utilizada quando da exaustiva comprovação da necessidade de se fazer uso de um curador no auxílio da PsDs (art. 84, §§1ºe3º)[12] exclusivamente para atos de gestão patrimonial (art. 85)[13].
Portanto, constata-se que a solução mais democrática e humana é a tomada de decisão apoiada, na qual a PsDs elege duas pessoas idôneas de sua confiança para prestar-lhe auxílio, assim permitindo a condução da PsDs nos seus próprios interesses, com sua participação mais ativa, conforme o art. 1783-A, inaugurado no Código Civil pela Lei 13.146/15[14].
Enfim, em que pese as inovações dos estatutos mencionados e a pacificação de alguns temas pelo STJ, ainda há muito que ser debatido diante da complexa tutela que deve ser realizada a uma parte cada vez mais relevante da população, envolvendo inúmeras questões ainda sem respostas, desde a herança digital[15], as mudanças nas relações trabalhistas e previdenciárias e outros temas relevantes.
Assim, observando as garantias dos direitos humanos e, como afirmou o Ministro Luís Roberto Barroso em sua posse como presidente do STF, a necessidade da real complementação das garantias constitucionais, objetivando maior isonomia, deve-se propiciar maior proteção a todos nós que passaremos um dia pela idade avançada buscando a dignidade, a inclusão e o respeito que o passar inexorável do tempo nos faz merecedores.
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[1] World Population Prospects 2022, Summary of Results. United Nations New York, 2022.
[2] https://saudeamanha.fiocruz.br/2050-brasil-tera-30-da-populacao-acima-dos-60-anos/
[3] “The proportion of older people in the population is increasing in almost every country. By 2050, around two billion people globally will be aged 60 years or over. Dementia is currently the seventh leading cause of death among all diseases and one of the major causes of disability and dependency among older people globally. It can be overwhelming not only for the person living with dementia, but also for carers, families and society as a whole.” (Global status report on the public health response to dementia, World Health Organization, 2021)
[4] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/24092023-Limites-da-curatela-e-a-protecao-da-pessoa-interditada.aspx
[5] (…) Não é por outra razão que a velhice, por si só, não implica em incapacidade, por mais idosa que seja a pessoa, estabelecendo o Estatuto do Idoso, Lei 10.741/03, especial proteção para a pessoa maior de 60 anos, como
expressão da universalização do exercício da cidadania (…) (0199222-53.2014.8.19.0001 – APELAÇÃO – 1ª Ementa Des(a). JOSÉ CARLOS PAES – Julgamento: 01/06/2016 – DÉCIMA QUARTA CÂMARA CÍVEL)
[6] PACHÁ, Andreá. Velhos são os outros. Intrínseca, 2018.
[7] Art. 2º A pessoa idosa goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. (Redação dada pela Lei nº 14.423, de 2022)
[8] “detecta-se uma disparidade injustificável, verdadeiro despautério jurídico. Afastar um sujeito da titularidade de seus direitos, obstando-lhe a prática de quaisquer atos da vida civil, concedendo-lhe tutela tão somente aos interesses patrimoniais, a ser efetivada por intermédio de terceiros (o representante legal), relegando a segundo plano os seus interesses existenciais. Daí a necessidade premente de dedicar-se a proteção jurídica à pessoa humana sob a perspectiva do que ela é, e não pela ótica do que ela tem” (Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Direito civil. Teoria geral, 2012, p. 198).
[9] Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I – casar-se e constituir união estável; II – exercer direitos sexuais e reprodutivos; III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
[10] Apelação cível. Interdição. Genitora idosa (85 anos). Ausência de limitação para gerir sua pessoa e bens. Limitação exclusiva para condução de veículo automotor. Sentença de improcedência, afastada curatela. Expedição de ofício ao DETRAN para medidas cabíveis envolvendo CNH da idosa. Ausência de argumentos aptos para modificação do decisum. Decisão irretocável. Motivação do decisório adotado como julgamento em segundo grau. Inteligência do art. 252 do RITJ. Resultado. Recurso não provido. (TJSP; Apelação Cível 1012535-23.2019.8.26.0019; Relator (a): Edson Luiz de Queiróz; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de Americana – 1ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 28/10/2021; Data de Registro: 28/10/2021)
[11] Art. 374. Não dependem de prova os fatos: IV – em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.
[12] Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. § 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei. § 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.
[13] Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
[14] Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
[15] https://www.conjur.com.br/2023-ago-23/souza-siqueira-desafios-juridicos-heranca-digital