Caso de Genivaldo: sanção penal, abusos e direitos

Por Fernando Augusto Fernandes, advogado e pesquisador, publicado em 05/06/2022, no Conjur, em https://www.conjur.com.br/2022-jun-05/fernando-fernandes-sancao-penal-genivaldo

Chocante a cena do assassinato que os policiais rodoviários federais cometeram ao colocarem um cidadão dentro da caçamba de um carro da polícia e o asfixiarem com gás lacrimogêneo. Este artigo vai abordar quais análises jurídicas possíveis ao fato ocorrido, também as desproporcionalidades das penas aplicáveis aos homicídios praticados por cidadãos comuns, em comparação com aqueles realizados pelos agentes do estado.

Quanto ao nexo de casualidade não parece haver a menor dúvida que Genivaldo de Jesus Santos morreu asfixiado em decorrência da ação dos policiais que, ao prenderem a vítima em um ambiente enclausurado passaram a preencher aquele espaço com lacrimogêneo. É sabido que os efeitos do gás é tosse, espirros, mal-estar, dificuldade de respirar, sensação de queimadura na pele.

Basta uma pequena pesquisa para perceber que a substância é classificada como arma química e teve uso banido pela Convenção de Armas Químicas em 1993. Muitas bombas vêm com avisos: “Perigo: não dispare diretamente na pessoa. Pode causar graves lesões ou morte”.

Diante disso é de se perguntar quanto a parte subjetiva do crime. Qual foi compreensão dos agentes e se agiram com dolo ou culpa? Ora, a presunção é de que os agentes tenham compreensão do que causa o gás lacrimogênio. Na filmagem é possível ouvir os gritos de Genivaldo e ainda os que assistem avisarem “vão matar o cara”. Portanto, minimamente os policiais assumiram claramente o risco de morte, o que configura evidente dolo eventual na morte.

O tipo penal de homicídio; “matar alguém” qualificado pelo emprego de asfixia (artigo 121, §2°, III, do Código Penal), tem pena de doze a trinta anos. A pena é a mesma que a qualificadora incluída pela Lei 13.964/19 quando o delito é praticado “contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144, da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela”. A tese de que os agentes teriam cometido um crime culposo (artigo 121, §3º, CP, cuja pena é de um a três anos) com a majorante de 1/3, por inobservância de regra técnica de profissão ou ofício, não se sustenta por evidente em razão do fato que a ação de submeter o preso a condições cujas consequências eram evidentemente previsíveis. Por outro lado, importa notar que a (des) proporcionalidade da pena deste dispositivo frente ao furto simples (artigo 155 CP, de um a três anos) e o furto qualificado por destreza de um celular no bolso (artigo 155, §4º, CP, de 2 a 8 anos) revelam uma severa distorção quanto o apenamento do crime de furto confrontada ao homicídio culposo! Tratei do tema em artigo recente aqui na ConJur.

Vejamos a este propósito a comparação entre a pena do crime de homicídio culposo na direção de veículo, de dois a quatro anos (conforme alteração legislativa de 2014), ao lado de um homicídio praticado também na direção, mas com dolo eventual, cuja pena é aquela do artigo 121, do CP, de seis a 20 anos. A gritante diferença entre a pena de um homicídio na direção com culpa e o mesmo fato com dolo eventual gerou um pernicioso efeito, eis que em casos de acidentes de trânsito com morte é comumente empregada argumentação acusatória que pretende alargar a incidência de dolo eventual, com a finalidade de perseguir a pena mais severa [1]. Bem assim, seguir tal lógica no caso em análise culmina claramente na conclusão de que os agentes públicos agiram com dolo eventual no homicídio de Genivaldo, e isto pode ser afirmado com ainda maior segurança do que na pretensa elasticidade do dolo eventual em crimes de trânsito, porque há dados concretos que apontam para a assunção do risco de morte pelos policiais.

Essas distorções são evidentes quando se compara a Lei de abuso de autoridade, Lei 12.869 de 2019, e verificamos que nenhum dos crimes tipificados ultrapassam quatro anos, sendo todos passíveis de penas alternativas, incluindo o artigo 13 que prevê o tipo penal de “constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência”.

A Lei 9.455/97 que prevê o crime de tortura, o qual, no caso de Genivaldo, teria se realizado mediante a ação de “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal”, tem pena de dois a oito anos. No caso adveio o resultado a morte, consequência prevista no §3º do artigo e que faz saltar a pena para mínima de oito e máxima de 16 anos, no caso ainda seria aumentada de 1/6 a 1/3 por ter sido o delito praticado por agente público (§4º, II) chegando a uma possível pena de 20 anos de prisão.

Portanto, existem duas compreensões jurídicas para o ato que culminou no assassinato de Genivaldo; o homicídio qualificado pela asfixia com pena de 12 a 30 anos e a tortura duplamente qualificada com pena de 18 a 20 anos. Em ambas as possibilidades parece presente o dolo de homicídio, ainda que por dolo eventual. A suposta resistência à prisão evidentemente não autoriza o abuso efetivo da força com plena previsibilidade morte, já que nesse caso a força autorizada funciona tal qual a legítima defesa (artigo 25, do CP), ou seja, a força autorizada é aquela “moderadamente dos meios necessários”.

O policial Derek Chauvinque matou George Floyd em Mineápolis, nos Estados Unidos, após contê-lo com o joelho em seu pescoço, escutando os alertas de que aquele não respirava manteve o pescoço sob pressão até ocasionar-lhe a morte — foi condenado a 22 anos. Outros policiais como Thomas Lane que assistiu à ação do colega declarou-se culpado e teve a pena diminuída de 12 para 3 anos. Lane, Kueng e Thao foram considerados “culpados de privar Floyd de seus direitos civis, mostrando indiferença deliberada às suas necessidades médicas quando o ex-policial de Minneapolis Derek Chauvin se ajoelhou sobre Floyd por mais de nove minutos, em 25 de maio de 2020”. Naquele estado violar direitos civis de uma pessoa “é punível com prisão perpétua ou pena de morte, dependendo das circunstâncias do crime e da lesão resultante, se houver”.

O policial é um servidor público que arisca a vida para proteger os demais cidadãos. É autorizado a usar arma e a força justa e necessária. São trabalhadores que precisam ser valorizados e receberem salários adequados ao trabalho que exercem. Diga-se, aliás, que o uso de verbas públicas para pagamento de magistrados e promotores acima do teto constitucional ofende a busca por melhores condições a outros servidores, como os policiais.

A busca pela democratização exige que além da valorização haja responsabilização dos abusos cometidos. E se acentue que forças políticas se utilizam constantemente de um discurso de incentivo aos abusos e de uma fictícia oposição ao combate do crime que se originaria daqueles que defendem o respeito aos direitos humanos. Ainda colocam sob as costas da polícia o único braço do Estado a “atender” a população carente ou não privilegiada. Nada é justificativa para se permitir, autorizar ou se omitir diante das cenas vista no caso de brutal homicídio de Genivaldo.

O Estado é diretamente responsável pelas ações no Jacarezinho, no qual 27 pessoas foram mortas incluindo o policial civil André Leonardo de Mello Frias. O risco que se submetem os policiais e o incentivo as ações como a da Vila Cruzeiro levam a responsabilidade, pela teoria do domínio do fato, daqueles agentes governamentais com poder de comando desse tipo de ação que mata policial e cidadãos, ainda que o objetivo seja atingir envolvidos com a criminalidade organizada.

Evidente que não é admissível se permitir traficantes armados com fuzis em favelas ou em qualquer lugar, evidente que a polícia deve reagir a ações desses grupos e que ações podem gerar mortes indesejadas, mas legítimas. Isto não pode ser confundido com execuções, com incentivo a morte ou mesmo com desvios psicológicos que pairam o prazer de matar. Há evidente desvio que precisa de mais do que direito penal, mas de aposentadoria por invalidez, afastamentos por problemas psiquiátricos e, ainda, doutrinação sobre o efetivo sentido dos Direitos Humanos.

O direito penal não resolverá tudo, seja com “combate ao crime”, seja nas ações criminosas do Estado ou da polícia. Mas para que os bons policiais sejam valorizados, a lei seja mantida e os direitos humanos garantidos, é preciso responsabilidade e prisão dos agentes envolvidos em barbáries. Se espera que, assim como o policial que matou Floyd condenado a rigorosa sanção, que no Brasil isso ocorra a sevara condenação como forma de evolução e aviso.

[1] A respeito, a ministra do STJ Maria Thereza de Assis se pronunciou sobre a tese acusatória que pretende a elasticidade do dolo eventual: “Sendo os crimes de trânsito em regra culposos, impõe-se a indicação de elementos concretos dos autos que indiquem o oposto, demonstrando que o agente tenha assumido o risco do advento do dano, em flagrante indiferença ao bem jurídico tutelado”. (STJ, Habeas Corpus nº 58.826/RS, relatora ministra Maria Thereza de Assis, j. 29/06/2009).

[2] ConJur — STJ nega Habeas Corpus para que réu responda por crime menos grave

 

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